Li, Gostei, Resenhei

Todo dia a mesma noite – Daniela Arbex

12 de março de 2018

Autora: Daniela Arbex;
Editora: Intrínseca;
Páginas: 248;
Sinopse: Reportagem definitiva sobre a tragédia que abateu a cidade de Santa Maria em 2013 relembra e homenageia os 242 mortos no incêndio da Boate Kiss. Daniela Arbex reafirma seu lugar como uma das jornalistas mais relevantes do país, veterana em reportagens de fôlego – premiada por duas vezes com o prêmio Jabuti – ao reconstituir de maneira sensível e inédita os eventos da madrugada de 27 de janeiro de 2013, quando a cidade de Santa Maria perdeu de uma só vez 242 vidas. Foram necessárias centenas de horas dos depoimentos de sobreviventes, familiares das vítimas, equipes de resgate e profissionais da área da saúde – ouvidos pela primeira vez neste livro -, para sentir e entender a verdadeira dimensão de uma tragédia sobre a qual já se pensava saber quase tudo.

A autora construiu um memorial contra o esquecimento dessa noite tenebrosa, que nos transporta até o momento em que as pessoas se amontoaram nos banheiros da Kiss em busca de ar, ao ginásio onde pais foram buscar seus filhos mortos, aos hospitais onde se tentava desesperadamente salvar as vidas que se esvaíam. Foi também em busca dos que continuam vivos, dos dias seguintes, das consequências de descuidos banalizados por empresários, políticos e cidadãos. A leitura de “Todo dia a mesma noite” é uma dolorosa e necessária tomada de consciência, um despertar de empatia pelos jovens que tiveram seus futuros barbaramente arrancados. Enxergá-los vividamente no livro é um exercício que afasta qualquer apaziguamento que possamos sentir em relação ao crime, ainda impune. (Skoob)

O Caso Boate Kiss ficou mundialmente famoso, então é pouco provável que alguém não saiba do que vamos falar aqui. Mas, vou tentar fazer um resuminho para quem não lembra muito bem. Em 27 de janeiro de 2013, a boate Kiss estava mais lotada do que deveria. Para piorar, o vocalista da banda Gurizada Fandangueira acendeu um sinalizador impróprio dentro da boate, atingindo a espuma utilizada para a acústica. E, como se não fosse suficiente, a espuma era altamente tóxica. Naquela noite, 233 jovens morreram. Ao longo dos meses seguintes, 9 feridos não resistiram e faleceram no hospital. Totalizando 242 vítimas diretas da Boate Kiss. Porém, só quem viveu essa história, tem noção de quantas vítimas indiretas existem. 

Já era de se esperar que Todo dia a mesma noite fosse um livro muito sensível. Desde o primeiro momento, quando você abre a capa do livro e encontra a lista de nomes dos falecidos, em ordem alfabética, o corpo gela. São muitos nomes e cada um deles guarda uma história. Na grande maioria, nunca chegaremos a saber detalhes sobre cada um daqueles jovens. Porém, mesmo que não tenhamos conhecimento dos anseios que tinham em vida, é impossível não olhar para essa pilha de nomes sem que o coração aperte. O livro segue uma especie de cronologia: o resgate – o atendimento das vítimas – a busca dos pais e o reconhecimento dos corpos – dados sobre em que pé está a investigação – e finaliza com um apanhado sobre como estão os familiares das vitimas que acompanhamos durante o desenrolar do livro.  

É um livro rápido de ler e que prende bastante a atenção. Mas, por guardar tantas histórias sofridas, é bem pesado também. Mexe com a gente, principalmente com a nossa empatia. Pelos pais, pelos sobreviventes e por todos que carregam cicatrizes (físicas ou não) daquela noite. Divido em 16 capítulos, as histórias não seguem uma ordem. Elas se intercalam o tempo todo, complementares. Como um quebra cabeça. Muitas das histórias ali, já conhecemos de notícias publicadas ao longo desses 5 anos. Até por que, são os familiares e sobreviventes que já estão mais preparados para falar abertamente sobre o caso. Não deve ser fácil para ninguém, mas tem pessoas que não conseguem se abrir. E quem somos nós para julgar ou exigir que eles falem?

Mas, durante o Todo dia a mesma noite, temos a oportunidade de saber mais detalhes. Todos contaram mais abertamente, não só os pais das vítimas, nem só os sobreviventes. Os médicos, enfermeiros, bombeiros e outros voluntários no resgate abriram o coração. A partir desses relatos, conseguimos sentir profundamente, parte do sofrimentos que eles tiveram. Resultando em um sentimento único, pouco experimentado por eles: a empatia. Essas pessoas foram tão julgadas. Pela maneira como socorreram, por deixarem seus filhos frequentarem a boate Kiss. Por ainda buscarem por justiça. Tem pessoas que chegam a alegar que estão destruindo a imagem da cidade, por não esqueceram o caso. Ou, pior, não estão deixando os filhos descansarem em um outro plano. 

Todo dia a mesma noite vai, exatamente, de encontro a essa busca diária. De não deixar a história cair em esquecimento. De lutar por justiça. De gerar empatia e de impedir que o caso se repita em qualquer outro lugar do país. A verdade é: nada do que eu diga aqui vai poder resumir o significado desse livro. Dessas histórias. Dessa luta. É inacreditável como um país pode ser tão injusto, hipócrita e nojento. Além do sofrimento de perder alguém, essas pessoas foram obrigadas a ouvir e a passar por absurdos. É dolorido demais. No livro, conhecemos a história de um casal que perdeu o único filho de 19 anos. A esposa não podia ter filhos e amou aquele menino desde o momento em que o adotou.

Eram muito religiosos e a mãe chegou a pedir que o filho não fosse para a festa. Porém, como qualquer jovem, ele queria viver a vida sem amarras. No dia de seu enterro, seus pais ouviram julgamentos muito pesados, vindo de seus amigos da igreja e do próprio pastor. Ouviram que não deviam chorar, por que aquele era um castigo divino. Se estivesse na igreja não teria acontecido. Que nem deveriam ter adotado o rapaz, para inicio de conversa. Pois estava na cara que Deus não queria que ela fosse mãe. Eu me pergunto aonde foi parar a humanidade. O que custavaessas pessoas se colocarem no lugar daqueles pais? 

Não há o que discutir, Daniela Arbex é uma excelente jornalista e sabe construir um livro reportagem como ninguém. Cada vez que Todo dia a mesma noite for lido, salvará as famílias do mar de indiferença que encontram diariamente. Salvará essas histórias do esquecimento e, se tivermos sorte, ajudará no caminho da busca pela justiça. Muitas vidas acabaram naquela noite. Muitos pais seguem em estado de total desespero até hoje. E, tudo o que podemos fazer, é ajudar que o caso Boate Kiss não seja esquecido e que não se repita. 

Quantos quartos em Santa Maria estarão com as luzes acesas agora?

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3 Comments

  • Reply Girl Power: 3 escritoras para ler e se inspirar | Ré Menor 18 de agosto de 2019 at 22:02

    […] das mais premiadas de sua geração, é autora do best-seller Holocausto Brasileiro, do Cova 312 e Todo dia a mesma noite. Eu sinto que ela não tem medo de ir a fundo em assuntos delicados e que ela faz questão de dar […]

  • Reply Melhores do ano: 6 livros que li e amei em 2018 | Ré Menor 12 de dezembro de 2018 at 23:20

    […] Para ler a resenha, clique aqui. […]

  • Reply Dia do escritor: 6 livros de autores brasileiros | Ré Menor 26 de julho de 2018 at 17:42

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